Passou o carnaval, o
verão vai terminando e com ele o frenesi dos brasileiros com nosso imenso
litoral. Existe alguém que não gosta de passar férias de verão na praia,
mergulhar no mar, caminhar pela areia, olhar o horizonte sem fim? No entanto,
apesar de termos praias lindíssimas, e de TODAS serem, por definição, públicas,
nem sempre é possível desfrutar desta paisagem tão especial… às vezes não
conseguimos sequer enxergá-la.
Percorrendo nosso
litoral, é cada vez mais comum que, de repente, a paisagem seja interrompida
por muros altíssimos protegendo condomínios privados que bloqueiam a entrada
para a praia e a visão do mar. Em algumas situações, as casas avançam com muros
de contenção sobre a areia, e, com o avanço das marés, literalmente, eliminam a
praia.
Quando não são os condomínios residenciais, são “barracas
de praia” que se transformaram em verdadeiros complexos de lazer à
beira-mar, em cima da areia, bloqueando e privatizando o usufruto da praia. Um
exemplo impressionante é o de Porto Seguro, na Bahia. Quem passa pela estrada
que liga esta cidade a Santa Cruz de Cabrália percorre uma série de
empreendimentos gigantescos que incluem restaurantes, espaços para shows,
playgrounds etc., e que impedem os pobres mortais de simplesmente ver ou
mergulhar no belíssimo mar azul turquesa da cidade…
Isso é cada vez mais frequente… Mas é permitido?
Não! De acordo com a Constituição Federal, as praias são bens da União. Além
disso, a Lei 7.661/1988, que regula o uso da costa marítima do nosso
país, determina claramente, em seu Artigo 10, que “As praias são bens
públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso
a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos
considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas
protegidas por legislação específica.”
Então, se a legislação não permite que a praia –
pública – seja ocupada por esses empreendimentos, como é possível que estes
existam há tanto tempo e continuem se multiplicando? No caso de Porto Seguro,
como em muitas outras situações de privatização de praias, é a irresolução
jurídica, ou seja, os processos que se estendem indefinidamente numa teia de
recursos, agravos e táticas protelatórias, que mantém flagrante ilegalidade,
garantindo os benefícios dos usurpadores.
Órgãos públicos como o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), assim como
promotores de vários ministérios públicos do país, ao tentar mandar abrir
condomínios, derrubar muros e barracas, enfrentam o enorme poder político local
e sua incidência sobre o poder jurídico, em benefício dos que desejam manter a
situação como está, contrariando o interesse público.
Em Porto Seguro, por exemplo, no início da década
de 2000, o Iphan emitiu ordens administrativas determinando a retirada das
barracas que ocupam o litoral Norte da cidade, ou seja, as que estão à direita
da estrada paralela ao mar, literalmente sobre a areia. Como não foram
cumpridas, a questão foi judicializada: o Iphan recorreu à Justiça solicitando
que esta ordenasse a retirada das barracas. Passados mais de dez anos,
pouquíssimas ordens judiciais foram emitidas (menos de 10 barracas foram
removidas, entre dezenas existentes) e, na maioria dos casos, os processos
circulam nas diversas instâncias, com recursos e mais recursos…
O fato é que os donos destes empreendimentos são
agentes locais poderosíssimos, que participam da direção política da cidade,
ocupam cargos altos no Executivo e no Legislativo, têm laços estreitos com
juízes e promotores…
Enquanto isso, as barracas continuam firmes e a
praia segue privatizada… E quem aprecia a tranquilidade e a amplidão da
paisagem do mar vai ter que buscar isso em lugares cada vez mais raros e
longínquos…
Raquel Rolnik, em seu blog.
Fonte: Pragmatismo Político.