Desde os tempos em que o ex-prefeito Osmar de Aquino implantou a
mão inglesa, em um sábado ensolarado do passado e por não mais que algumas
horas, o trânsito do Morgado nunca mais foi o mesmo. De lá para cá, muita água
ainda limpa passou por debaixo da ponte de ferro da Great Western Railway
Company, na rua do Boi Choco.
Nesse tempo, até as bicicletas chegaram a ser emplacadas e um
único guarda de trânsito dava conta da organização do que hoje chamamos de
mobilidade urbana.
As placas dos caminhões, camionetes, carros de passeio e de
praça, possuíam apenas três dígitos. Os números dessas placas, da frota inteira
da aldeia, seja a particular ou a de aluguel, cabiam na prodigiosa memória de
José de Andrade Vieira.
Zé
Vieira, como era conhecido e para completar, também tinha nos guardados da
memória os números de todos os telefones da cidade, com os mesmos três dígitos
das placas dos carros. À época a telefonia local era administrada por uma
empresa chamada Coteguara.
Era só perguntar e Zé respondia, na bucha. Treinava a memória
com essas minudências, por certo para usá-la no jogo de baralho e na estratégia
política, que eram o seu forte.
O trânsito, em particular, integra o conjunto de muitos outros
problemas que afligem a nossa adolescência como cidade. É a decorrência natural
de um lugar que teve seu crescimento forçado para todos os lados sobre a
fronteira rural e ainda muito tímida e desorganizadamente para cima.
A povoação abriga cada vez mais gente e foi inundada por carros
e motos, numa profusão que a deixa caótica, principalmente em dias de feira.
Fica
parecida, nos horários de pico, com uma Nova Deli ou Bombaim, guardadas as
devidas proporções.
Ultrapassamos, com razoável desenvoltura, o tempo em que Zé
Sinhô, filho de um fazendeiro do Morgado, nos mesmos dias de sábado, pilotando
a sua camionete Chevrolet “meia quatro”, branca com para-lamas azuis, escrevia
um “zero” com os pneus do seu bólido, deixando o numeral gravado com a tinta
dos pneus queimados pelo atrito no centro do pavimento. Isso acontecia, com
alguma frequência, no largo da Pedro II, em frente ao prédio de Bezerra Bastos
e do cartório de Garibaldi Sales.
Certa vez, em pirueta ainda mais ousada, imprimiu um “oito”,
para o delírio de uma plateia que quase sempre o saudava com gritos e assovios
após cada manobra.
Como se
fosse previamente acertado, o guarda só aparecia depois, para checar a escrita
do motorista. Como o cartório em frente não reconhecia a firma do autor, ficava
por isso mesmo.
Recentemente
foi fechado um longo ciclo mediado entre o não pode mais e o não pode ainda,
espaço de tempo que marcou a transição entre a atuação da guarda de trânsito do
Estado e efetivação da Guarda Municipal especializada.
Em suma, os guardas estaduais saíram de cena enquanto a guarda
municipal ainda não existia de fato. A tal guarda, criada por lei, ficou
confinada no papel por uns bons anos, inclusive na gaveta do atual intendente.
Finalmente instalada, as mãos foram postas à obra de reorganizar o trânsito da
Bombaim brejeira.
Nesse hiato de razoável duração, foi aberto um moroso processo
seletivo para admissão dos novos guardas de trânsito. Um outro concurso, desta
feita o de “achismos” (eu acho isso…eu acho aquilo!) fluiu sem nenhuma
autocrítica por parte dos próprios “achistas,”.
O tal concurso foi capaz de produzir experiências malfadadas,
algumas delas carimbadas com bom humor pela população, como no caso do girador
da Pedro II.
O tal girador foi batizado pelos morgadenses como “giradoido”.
Ineficiente e mal concebido como obra viária, até hoje só serve para causar
sustos nos motoristas.
Mais
parece uma roleta russa. Mesmo assim é respeitado, como devem ser respeitados
todos os loucos.
Nos dias atuais, uns poucos agentes de trânsito do município já
podem ser vistos no Morgado, algumas vezes em duplas, postados nas esquinas
onde o tráfego é mais intenso e crítico. Comunicam-se aparentemente apenas
entre si e assumem uma postura visivelmente inamistosa.
É como se a cara amarrada os fizesse superiores, colocando-os
acima dos mortais e fosse absolutamente necessária para suportar o peso da
farda cítrica. Tal postura, na opinião de boa parte dos munícipes, é bem mais
azeda do que o necessário para o exercício da autoridade.
Dentro da máxima que gentileza gera gentileza, o exemplo do
agente de trânsito paraibano “Apito de Ouro” contraria a lógica local e bem que
poderia ser usado como parâmetro.
Apito de Ouro atuou na década de setenta, na capital da
província. Sua ferramenta para orientar e organizar o trânsito era apenas o
apito. Uma coreografia característica e a gentileza com a qual tratava os
condutores de veículos, de carroceiros a taxistas, de caminhoneiros a
proprietários de automóveis de luxo, era a mesma, sem distinção e sempre com um
sorriso nos lábios.
Apesar dos pesares a chegada dos novos agentes, somada a outras
iniciativas, fez melhorar em muito o nosso trânsito, tanto com relação ao fluxo
como a organização dos estacionamentos, além de outros particulares. Nisso
todos concordam. Há de se reconhecer que as poucas intervenções feitas nessa
nova fase, não foram concebidas como fruto do empirismo experimentalista, mas
sim levadas a cabo por gente do ramo, após uma mínima avaliação técnica.
Um fato, porém, assume dimensões no mínimo preocupantes. Numa
cidade onde o bipolaridade política parece ser uma praga inextinguível e onde
os investimentos na área do trânsito, pela timidez, aparentam ter como única
fonte de financiamento o dinheiro arrecadado com aplicação dos autos de
infração, um talão e uma caneta, ou mesmo um moderno programa desses
construídos para dispositivos móveis, poderiam se tornar ferramentas, quando
mal usadas, destinadas ao atendimento de todos os apetites, desde a compulsão
arrecadatória, até a mera implicância político partidária.
A assertiva acima poderia até ser considerada atentatória à
dignidade dos agentes da nova guarda, não houvesse o cuidado na colocação do
verbo no seu devido tempo, ou seja, poderiam.
Há motivo para que pensemos assim? É claro que há!
Conheci
as instalações da STTRANS no dia em que fui requerer o cartão de “idoso” para
seu usado em vagas de estacionamento especiais, o qual só pretendo lançar mão
em casos absolutamente extraordinários. Mesmo que quisesse, teria que disputar
a tal vaga com outros sessentões, setentões e até oitentões, visto que quase
não há espaços com essa destinação aqui no Morgado. Os poucos que existem
padecem de sinalização adequada.
Bem recebido e já acomodado, aguardando a minha vez de ser
atendido, vi quando um motorista, com um auto de infração na mão, procurava
saber qual o nome do agente que tinha lhe aplicado a multa pelo fato de estar
sem cinto de segurança, ao trafegar na avenida padre Inácio de Almeida, em
frente ao Mercado Velho.
O servidor da STTRANS disse que o guarda responsável pela
autuação era aquele cuja matrícula já fora informada na notificação. Achou, por
certo, que o motorista se conformaria.
Instado de forma insistente a dizer o nome do guarda, o servidor
informou que a matrícula pertencia ao Superintendente do órgão.
Questionado se havia sido o próprio Superintendente que havia
aplicado a multa, o servidor informou que não. Acrescentou que todas as multas,
por orientação da administração, são lançadas na matricula do superintendente.
É como se o “super” do “intendente” conferisse ao chefe do trânsito
local o dom divino da onipresença, da ubiquidade, ou seja, o de poder de estar
em todos os lugares ao mesmo tempo.
Internamente, no âmbito da estrutura administrativa da
intendência, o fato talvez nem seja visto com tanta estranheza. O intendente
geral, pelas suas práticas políticas e administrativas, dá indícios fortes de
ter sido agraciado divinamente com o dom da onipotência.
Quem se der ao trabalho de consultar o Código de Trânsito, mais
precisamente o Inciso V do art. 280, verá que os autos de infração
lavrados de forma apócrifa ou que tenham como signatários pessoa diferente do
agente que presenciou a conduta, tipificou e redigiu o auto, são nulos.
Concentrar na mão do superintendente a possibilidade de só ele
rever possíveis equívocos ou desvios de conduta dos agentes, parece agredir o
mais comezinho senso de justiça, dando oportunidade para ilações de todos os tipos,
inclusive a de que pesos e medidas diferentes poderão ser usados na hipótese de
um eventual recurso.
Se o desejo real é o de que venhamos um dia a ter um trânsito
modelo, do qual possamos nos orgulhar, multar um veículo que se move a 2,5
quilômetros por hora, com um intervalo de meio metro entre um carro e outro
pelo fato do condutor estar sem cinto de segurança, parece pedagogicamente
inaceitável, pouco razoável e até truculento. Um mero gesto do agente, sanaria
o problema. O motorista, por certo, o respeitaria mais ainda. Não daria margem
para o condutor deduzir que o salário dos agentes depende das multas aplicadas.
Há razões para dedução. O portal da transparência do município,
continua opaco com relação ao número de multas aplicadas por mês, trimestre ou
semestre, bem como sobre valores apurados e a sua devida destinação.
Da forma como atua hoje o órgão de trânsito do Morgado,
precisaríamos de uma memória prodigiosa como a de Zé Vieira, para gravar o
inteiro teor do Código de Trânsito e segui-lo tão à risca, que conduzir um
veículo em solo morgadense passaria a ser uma atividade por demais tensa e até
temerária.
Um bom motorista certamente não é aquele considerado um ás do
volante, como um dia foi Zé Sinhô, mas aquele que conduz seu veículo procurando
obedecer, no máximo que for possível, ao verdadeiro cipoal de regras impostas
pelo código específico.
Isso não é fácil numa cidade que tem suas obras infraestruturais
arrastadas por mais de meia década, com ruas esburacadas, desvios, deficiente
de sinalização, carente de semáforos, com faixas de pedestres que são apagadas
como uma escrita a grafite pela borracha dos pneus.
Como todos os condutores que trafegam pelo Morgado, pertenço ao
grupo de risco dos que podem vir a ser multados. Espero que nunca por uma
conduta deliberada. Em qualquer das hipóteses posso até tomar a limonada, mas
sabendo quem a preparou.
Alexandre Henrique (Cronista e Fotógrafo
multimídia)