sexta-feira, 31 de julho de 2020

UMA BIBLIOTECA PARA MULUNGU



No início da década de 1990, o mulunguense Aluísio ou, entre nós, “Lula Arquia”, trabalhava como porteiro em um prédio de Ipanema, na Cidade Maravilhosa, onde morava um dos principais intelectuais do País, Affonso Romano de Sant´Anna, então Presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
O porteiro, com quase nenhum grau de instrução, certa vez indagou do cronista, poeta, ensaísta e crítico literário..., se uma cidadezinha no interior da Paraíba teria condições de possuir sua biblioteca. O intelectual respondeu que sim, e quis saber que cidadezinha era essa: Mulungu, no interior da Paraíba, com seus 10 mil habitantes.
Na verdade, a Biblioteca já existia, mas era, digamos, pobrezinha.
Impressionado com a pergunta incomum do porteiro e por sua preocupação com a instrução do seu povo, Affonso Romano de Sant´Anna publicou na sua coluna dominical no Jornal O Globo aquela conversa. A crônica foi intitulada UMA BIBLIOTECA PARA MULUNGU. O ano: 1991.
Affonso Romano de Sant´Anna, pouco tempo depois, entrou em contato com o prefeito de Mulungu, o médico Geraldo Camilo. Conversaram sobre o episódio e a coluna do jornal, e o escritor enviou para nós, mulunguenses, com o apoio do prefeito, um extraordinário acervo de livros. A pequenina Biblioteca Municipal Alzira Bezerra passou a contar, dali em diante, com muitos clássicos da literatura universal e da nacional.
À época, Geraldo Camilo distribuiu várias cópias dessa crônica pela cidade. Afinal, não era todo dia, ou todo mês, nem mesmo todo ano, que Mulungu ou algum mulunguense aparecia positivamente nas páginas de um dos principais jornais do Brasil, quiçá o principal jornal.
Durante um bom tempo, Affonso Romano de Sant´Anna e Geraldo Camilo mantiveram contato sobre Mulungu e sua gente, talvez porque o escritor nem sempre tenha recebido de outros prefeitos uma reciprocidade no seu desejo de ampliar as bibliotecas pelo País. Digo isso porque isso ele escreveu em jornais a respeito do desinteresse de muitos governantes com a questão.
Sobre o caso, o poeta Ronaldo Cunha Lima recitou um belíssimo poema, que também foi publicado no mesmo Jornal O Globo, dois meses depois, em uma das colunas dominicais do professor Affonso Romano de Sant´Anna. 

Poetizou Ronaldo:

“Três momentos, três instantes
se fizeram importantes
pra minha terra natal:
Aluísio deu a tônica
o poeta fez a crônica
e Mulungu foi pro jornal.

Mulungu virou emblema
saiu do mapa e poema
conforme agora se viu.
Portanto, compete a gente
continuar a corrente
pelo resto do Brasil.”

O Governador Ronaldo Cunha Lima era conhecido por Affonso Romano de Sant´Anna em face de suas poesias e especialmente pelo (re) conhecimento do poeta paraibano sobre a obra do também paraibano Augusto do Anjos. Falta a nós, paraibanos, mais (re) conhecimento sobre Ronaldo Cunha Lima, o poeta. Foi sem dúvida um dos grandes.
A crônica sobre a biblioteca para Mulungu, inicialmente publicada no Jornal o Globo, está eternizada em uma das obras de Affonso Romano de Sant´Anna, lançada no ano de 2013. O livro se chama “Ler o Mundo”.
Aliás, o professor Affonso Romano de Sant´Anna ficou tão fascinado com a pergunta do porteiro sobre a possibilidade de sua cidadezinha ter uma biblioteca, que em suas palestras Brasil afora em defesa da educação e da expansão das bibliotecas ("a corrente pelo resto do Brasil", do poema de Ronaldo Cunha Lima), usava essa história como exemplo.
Eu tive o privilégio de, durante quase três anos, nos idos de 1996 a 1998 ou início de 99, trabalhar como diretor da Biblioteca Alzira Bezerra, que funcionava bem no Centro da cidade, e assim testemunhar e me aproveitar do rico acervo de livros que tínhamos.
Em 2004, após o rompimento da Barragem de Camará, quando a água invadiu a biblioteca e atingiu parte dos livros, foi o acervo deslocado para outro prédio da Prefeitura. Este prédio abrigou também pessoas muito pobres que tiveram as suas casas atingidas pela enchente.
Mas, qual não foi a desgraça! Soube-se depois que algumas pessoas que estavam abrigadas no Prédio, nos dias mais frios, usaram livros para fogueira.
Não sei qual dos clássicos crepitou naqueles dias frios nas fogueiras de ignorância. Talvez a “Insustentável leveza do ser” ou a “Valsa dos Adeuses”, de Milan Kundera; talvez a biografia de Churchill ou a do jurista Teixeira de Freitas; talvez as Brumas de Avalon... Não sei. Não soube quais. Também não sei se ali queimaram os livros de Machado de Assis ou de Jorge Amado, ou apenas parte de suas “Obras Completas”. Talvez sim. Qual a importância das obras de Machado de Assis diante da frieza? Todos essas obras literárias, e inúmeras mais, faziam parte do acervo da Biblioteca.
Fico imaginando como seria a crônica de Affonso Romano de Sant´Aana sobre a ‘queima dos livros’ da BIBLIOTECA DE MULUNGU. Sobre isso, como seria o poema de Ronaldo Cunha Lima?
Por uma dessas ironias que parecem vir do além, pouco tempo depois, no prédio onde muitos dos livros daquela Biblioteca foram queimados, passou a funcionar a Secretaria de Educação do Município, e, no ano de 2009, a Secretária de Educação, Graça Camilo, minha mãe, por sinal, locou um prédio na Rua do Cruzeiro, antiga Rua da Linha, para reinstalação da Biblioteca Alzira Bezerra, onde funciona até hoje. Ali, os livros que escaparam da fogueira foram catalogados e reorganizados.
Sobra para contar dois momentos de descaso do Poder Público em 2004, o ano da queima dos livros. Um com água, ante o descaso do Estado da Paraíba com Camará, e que resultou no rompimento daquela barragem. Que ironia! O Governador da época era o filho do poeta Ronaldo Cunha Lima; outro com fogo: ante o descaso da Prefeitura de Mulungu com a Biblioteca Alzira Bezerra, o que permitiu a perda de muitos livros. Ironia! O Prefeito de então tinha sido o vice de Geraldo Camilo.
A Lula Arquia, Affonso Romano de Sant´Anna, Geraldo Camilo e Ronaldo Cunha Lima.
Extraída do Facebook de Ângela Júnior.