O texto a seguir é do jornalista Leandro Fortes e foi
originalmente publicado em sua página no Facebook.
NEOSTALINISMO NA AGÊNCIA CÂMARA
No dia seguinte à pantagruélica
votação da admissibilidade do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, uma reportagem feita
pela Agência Câmara, em 7 de outubro de 2014, começou a circular freneticamente
pelas redes sociais.
Assinada pela repórter Lara Hage, a
matéria tinha o seguinte título:
“Apenas 36 deputados se elegeram com
seus próprios votos”
Era, portanto, o argumento
lógico e matemático a explicar o circo de horrores onde se revezaram aquelas
caricaturas políticas que, entre surtos de fanatismo religioso e espasmos de
cretinice, fizeram do Brasil uma triste piada internacional.
A abertura da matéria, disseminada
por milhares de perfis, sites e blogs internet afora, era assim:
“Apenas 36 dos 513 deputados federais
que vão compor a Câmara na próxima legislatura (2015-2018) alcançaram o
quociente eleitoral com seus próprios votos. Desses, 11 são parentes de
políticos tradicionais em seus estados. Os outros 477 eleitos foram “puxados”
por votos dados à legenda ou a outros candidatos de seu partido ou coligação. O
número é o mesmo de 2010, quando também houve apenas 36 deputados eleitos com
votação própria”.
Não demorou muito para a turma do
presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), perceber o estrago
extra provocado pela matéria na já combalida imagem da votação do impeachment –
rapidamente traduzida como “golpe” pela imprensa estrangeira.
Na terça-feira, 19 de abril,
portanto, dois dias depois da votação, a direção da Agência Câmara aventurou-se
no inimaginável: adulterou o título e o texto da matéria para tentar estancar a
disseminação da informação original nas redes sociais.
Como na fase mais aguda do
regime de Josef Stálin, a Agência Câmara decidiu dar sumiço em uma informação depois de
ela ter se tornado inconveniente, da mesma maneira que o antigo líder soviético
fazia com dissidentes em fotos oficiais.
O nome da autora da matéria,
aliás, também foi apagado do texto.
Assim, o título “Apenas 36
deputados se elegeram com seus próprios votos” transformou-se na seguinte
pérola: “Eleição para a Câmara
dos Deputados segue o modelo proporcional previsto na Constituição”.
Mas o ridículo não para por
aí.
A informação sobre os 36 deputados eleitos
desapareceu completamente do texto que, para a incredulidade geral, foi editado
como se o responsável pelo arranjo ainda estivesse em 2014!
A abertura da matéria, depois de
editada, virou essa maravilha da subliteratura parlamentar:
“Os deputados federais que vão compor
a Câmara na legislatura de 2015 a 2019 foram eleitos pelo sistema proporcional
previsto na Constituição brasileira. Nas eleições proporcionais, primeiramente
verifica-se quais foram as coligações partidárias que receberam mais votos: o
total de cadeiras na Câmara – 513 – é, então, dividido proporcionalmente entre
essas coligações. As vagas de cada coligação são distribuídas para os
candidatos mais bem votados dentro de cada uma delas. E todos os 513 deputados
eleitos têm a mesma legitimidade em seus mandatos”.
Um primor de texto. Jornalismo
em estado puro!
Incrivelmente, foi mantida a data da
matéria – 7 de outubro de 2014 – para que o texto original jamais pudesse ser
acessado outra vez pelos arquivos da Agência Câmara. Esse tipo de artimanha na
internet, no entanto, exige um nível de profissionalismo que, certamente, o
adulterador sob o comando de Cunha não tem.
Isso porque o texto foi alterado, mas
a URL (no caso, o endereço de hospedagem na internet) não tem como ser mexido.
Assim, adivinhem onde aparece o título que os sábios da Agência Câmara tentaram
esconder?
Aqui, ó: http://www2.camara.leg.br/…/475535-APENAS-36-DEPUTADOS-SE-ELEGERAM-COM-SEUS-PROPRIOS-VOTOS.html
Mas,
calma, não acabou ainda.
Além de adulterar o texto da matéria,
a turma de Cunha também suprimiu da publicação original um quadro pelo qual era
possível ao leitor localizar os nomes dos 36 deputados eleitos.
O link, no entanto, pode ser
recuperado aqui: http://www2.camara.leg.br/…/imgNoticiaUpload1412701605642.jpg
A justificativa da direção da Agência
Câmara para a adulteração da reportagem, um ano e meio depois de o texto ter
sido publicado no site oficial da Câmara dos Deputados, é o retrato definitivo
da desonestidade intelectual aplicada ao jornalismo.
Segundo o desconhecido editor da
obra-prima, a matéria foi atualizada “para garantir uma explicação correta
do funcionamento do sistema de eleição proporcional no Brasil”.
Isso porque “ao contrário do que dizia o texto
anterior, não foi apenas um determinado número de deputados que se elegeu com
os seus próprios votos. Todos os deputados são eleitos com os seus próprios
votos dentro das regras do sistema proporcional. Portanto, todos os deputados
têm a mesma legitimidade nos seus mandatos”.
Esqueçam o cinismo.
Concentrem-se na curiosidade de a
direção da Agência Câmara só ter se dado conta da sagrada legitimidade de todos
os deputados com 18 meses de atraso – e justamente depois daquela tertúlia
verde e amarela que pode, vejam vocês, resultar na anistia de Eduardo Cunha,
esse probo parlamentar acusado de manter contas na Suíça para receber propinas
parceladas.
A propósito, o editor-chefe da Agência
Câmara, acreditem, é um jornalista e se chama João Pitella Junior. Fonte:
Pragmatismo Político.