A
tese de 330 páginas e as dissertações, de 112, foram pouco para preencher a
necessidade e a vontade de estudar de Paula Soria. Agora doutora em Literatura
pela Universidade de Brasília (UnB), a pesquisadora, que pertence ao grupo romà – nomenclatura para
ciganos, ratificada durante o I Congresso Mundial Romani, realizado na
Inglaterra em 1971 –, espera que sua história seja exemplo para que outras romani possam trilhar
trajetórias acadêmicas sem abandonarem seu povo.
Apesar
dos obstáculos que teve de enfrentar para chegar ao título, Paula se prepara
para continuar no caminho da pesquisa. “Tem muita coisa para escrever ainda.
Meu desejo era começar e não parar nunca mais”, afirma Paula, que já pensa em
desenvolver outro trabalho, abordando estudos culturais, para aprofundar o tema
pelo qual se diz apaixonada.
Oriunda de uma comunidade que valoriza
a oralidade e rejeita a escrita, começou os estudos aos 10 anos de idade,
quando teve a permissão de seus pais. O combinado era que ela, assim como as
outras romani
que ingressavam na escola, deixasse os livros para se casar, aos 15 anos. Seu
casamento já estava arranjado, mas Paula tinha sede de aprender desde criança.
Para
seguir com seu sonho, a menina teve de deixar a casa dos pais e a família romani – de quem pôde
reaproximar-se e ganhar algum apoio só depois de muito tempo. Nessa trajetória,
contou com a ajuda de amigos e, posteriormente, do marido não-romà para seguir
com os estudos. Terminou o ensino básico, o superior e se formou jornalista na
Universidad Nacional Autónoma de Honduras (UNAH). Seguiu pela Argentina e, já
no Brasil, graduou-se no curso de Artes Cênicas da UnB.
“Na minha cultura tem muitos artistas
e a gente acaba achando que tem que ser artista também”, afirma a romani, com bom humor.
“Mas eu sempre gostei de literatura e já na minha graduação comecei a buscar
disciplinas nesse campo para entender um pouco mais daquele mundo que me
fascinava desde pequena”.
No mestrado – realizado no
Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB -, Paula analisou, entre
outros, dois romances do rom argentino Jorge Nedich e discorreu sobre a
influência das representações literárias na realidade étnica romani e de que forma
validaram as imagens negativas sobre os
romà; também abordou a dificuldade de ruptura com esses padrões
estigmatizados.
No
doutorado, deu sequência aos estudos e buscou obras de autores não-romà de diversas
nacionalidades que tratavam dos romà com diferentes abordagens – a maioria
delas, segundo a pesquisa, preconceituosas e estereotipadas – e livros de
escritores romà contemporâneos. De acordo com Paula, estes tentavam
desconstruir tais introjeções e construir uma nova identidade.
“Procurei
privilegiar o olhar de dentro para fazer algo crítico, mostrar como os romàs pensam. E para que
não houvesse tanto estranhamento, tentei fazer uma espécie de tradução do que
os escritores apresentam e o que aquilo significa dentro da comunidade”,
explica Paula.
Sua orientadora nos dois trabalhos,
Sara Almarza, diz que foi uma oportunidade de grande aprendizado em muitos
assuntos. “Foi uma honra ter orientado essa pesquisa. Tenho 25 anos de
Universidade de Brasília e este foi o trabalho de maior envergadura que já
fiz”, exclama, orgulhosa, a professora.
MULHERES ROMANI. Paula Soria lembra que, em boa parte
dos grupos, as mulheres ainda são minoria, subalternizadas pelas sociedades
majoritárias e por uma cultura interna ainda patriarcal e sexista. “Elas têm
que seguir o marido, obedecê-lo, trabalhar só com ele. Em grupos como o meu, as
mulheres ainda têm que ir pras ruas ler mãos porque é uma tradição, mesmo que
não precise. Então, aquela que consegue romper com tudo isso e ser escritora,
traz uma voz muito diferente, de minoria dentro da minoria e que sobressai muitíssimo”,
analisa a romani
que é a primeira mulher “cigana” a concluir o doutorado na América Latina.
Segundo
sua pesquisa, antes dela houve um homem rom que também chegou ao título no
Brasil e sua temática se referia à Biologia. Nos demais países da América
Latina, não há registros de mulheres romani
doutoras.
Em sua tese, Paula afirma que, mesmo
não sendo maioria entre os escritores no mundo, não são escassas as escritoras romani que se aventuram a
escrever poesias, contos e romances de grande literalidade e engajamento
social.
“São elas que carregam consigo a
responsabilidade de transmitir a cultura, a tradição e os costumes para as
novas gerações e que hoje são, visivelmente, as principais protagonistas das
mudanças no seio do grupo étnico”.
Paula Soria pôde observar ainda que a
literatura ou a escrita não representam perda de elementos intrínsecos ao
âmbito da oralidade, enaltecida pelos romà,
mas permite o resgate e o registro da memória étnica e possibilita o
reconhecimento desse povo perante a sociedade.
“Tenho interesse que conheçam outros
aspectos do meu povo, da existência da literatura romani, do seu significado no contexto étnico
atual. Dialogo com várias questões relacionadas a estereótipos, preconceitos,
estigmas e a invisibilidade e silenciamentos históricos, tentando provocar
também uma espécie de transformação do pensamento do leitor de minha tese ou
dos artigos que penso escrever em relação aos romà“,
conclui. Fonte: Pragmatismo Político.