sexta-feira, 17 de julho de 2020

ROGACIANO LEITE, O VIOLEIRO DE ITAPETIM



Por Dr. Saulo Passos.
Doutor em Direito, Engenharia e Matemática.
Escritor e poeta.
Conterrâneo e amigo pessoal.

"Conheci-o é bem verdade e o via com freqüência nos meus tempos de criança. Sob a minha ótica, conseguia, perfeitamente, distingui-lo como uma pessoa notável. Tive o privilégio de incorporar esses momentos à minha memória devido à proximidade familiar existente entre mim e ele, pois sendo irmão de minha avó Elvira, era na casa dos meus avós que se hospedava quando estava em Itapetim. Ali, naquele casarão de cinco metros de pé direito, ouvia o seringueiro Pedro Silva, seu cunhado e meu avô, discorrer, horas a fio, numa palestra lenta, saudosa e fascinante, ora em português, ora em tupi guarani, sobre a fauna, a flora e os fatos que vivenciou durante duas décadas nos seringais da Amazônia. Talvez isso o tenha entusiasmado a reabrir as portas das “Fronteiras do fim do mundo”, texto jornalístico a respeito desse lugar que tanto o fascinava e terminou por lhe render um dos três Prêmios Esso de Reportagem.
Além de inteligência incomum, era de elegância singular. Alto, cabeleira a Castro Alves, vestia-se com estilo, garboso no andar, montava com primor - quando desfilava em seu cavalo Cadillac, soltava o chapéu até as costas que se pendurava ao pescoço pelo barbicacho e eu achava aquilo magistral -, brando no olhar, reverente nos gestos, voz melodiosa, boa dicção, ótimo orador, eloquente e persuasivo, bom de conversa, brincalhão - arremedava as pessoas para provocar risos -, encantador de plateias, escritor, jornalista, compositor, cordelista, repentista ao extremo, violeiro e, por fim, aquilo que a natureza reservou a bem poucos do gênero: cantador.
Há, realmente, uma coisa mágica nesta palavra. Um não sei quê. O canto parece ser a própria voz da alma. É no mistério da combinação das notas musicais que o canto se firma, tal e qual armadores fixados na parede a embalar o sonho na leveza de uma cantiga de ninar, acompanhada pelo gemido dolente dos punhos de uma rede, que envolve a poesia com o sagrado manto da melodia. É com essa doçura que ela chega até nós, no entanto, o engenho esplêndido que transforma a dor em poesia reside nas profundezas impenetráveis da alma do cantador. Quem ensinou ao cantador foi, certamente, o professor do uirapuru. Cantador, que distinta qualificação para se conferir a uma criatura! E cantador Rogaciano Leite nunca deixou de sê-lo, apenas recostou a viola à parede da saudade para cantar ao som de outros instrumentos que o transportaram para lugares distantes, mesmo assim, não olvidou a cabana, a roça, o sertão, enfim, tudo o que era de seu, continuou cantando e defendendo, como afirmara no poema “aos críticos”:

Não sou um Manuel Bandeira
Drummond, nem Jorge de Lima
Não espereis obra prima
Deste matuto plebeu
Eles cantam suas praias
Palácios de porcelana
Eu canto a roça, a cabana
Canto o sertão que ele é meu!

E cantou, e sonhou, e realizou-se. Partiu da Vila de Umburanas, viola debaixo do braço, já considerado poeta de talento e repentista assombroso, pois diplomado estava naquela que o poeta Zé Humberto cognominou - e os outros poetas corroboraram - de faculdade de diplomar cantadores: Itapetim, sua terra natal. Terra que amou e foi por ela amado. Não pela votação consagradora que recebeu do seu povo quando candidato a deputado estadual, impondo uma derrota fragorosa aos candidatos do Padre João Leite, mas pela alegria com que era recebido por seus pares, legítimos irmãos de terra e de canto. O amor que consagrava a seu lugar estava tão patente em seus escritos e nas muitas vezes que discorria sobre seu passado, acercado pelos filhos pequeninos, que Roraima só sossegou quando pisou o chão daquele parnaso de que seu pai lhe falara tanto.
Itapetim foi pra Rogaciano o Recife de Manuel Bandeira.
Escutá-lo era uma delícia. Rondava o mundo e voltava qual ave de arribação. Na certa, em busca de sorver suas raízes para recarregar as baterias, calibrar a alma, escovar as asas e retomar o vôo do sonho. A propósito, parte deste sonho foi comprovadamente realizado. O autógrafo “Dr. Rogaciano Leite”, em baixo relevo, aposto por ele na parede do casarão onde nascera, revela a ousadia daquela criança em conquistar o espaço da notoriedade. Assim, ingressou no jornalismo e concluiu o curso de Letras Clássicas na Faculdade de Filosofia do Ceará, em 1949
Ele se conhecia e sabia do seu potencial. O caminho que o menino Rogaciano planejara para si também estava desenhado pelas imagens que levou dentro do matolão de sonhos e que carregaria até o fim da vida. Jamais se distanciou de suas origens. Inexorável patrocinador da causa popular, venceu paradigmas, derrubou barreiras, escancarou as portas dos salões aristocráticos e mostrou ao Brasil, com simplicidade e determinação, do que é capaz o violeiro repentista com uma singela sonora colada ao peito.
  
A gente sentindo tudo
Quanto o violeiro sente
Parece que está sentindo
Uma cabocla pachola
Afinando uma viola
Pra tocar dentro da gente!...

Navegante em águas rasas e profundas, nauta soberbo em calmarias e tormentas. Tanto fazia cantar sextilhas, acompanhado pela viola, num humilde casebre de taipa, no sertão do nordeste, perante uma platéia singela, como fazer sonetos de improviso - pérola raríssima nos poetas - sob ovações e delírios de espectadores eruditos, em praça pública, auditórios ou em teatros de alta categoria. A excelência de sua poesia mantinha-se estável em qualquer circunstância.
Ao se apresentar em um teatro em São Luiz, para recital em homenagem ao centenário de Castro Alves, Rogaciano arquitetou, sem preparo prévio, uma dessas peripécias, que o jornalista Amaro Raposo, não encontrando adjetivos para qualificá-las, afirmou que aquilo foi um “escândalo intelectual” jamais visto nesses meios, “parecia que uma voz, que somente ele ouvia, ditava-lhe aquela chuva de versos”.
Era o improviso, sem controle, que brotava, em borbotões, daquela fonte inesgotável de repentes, cuja perfeição de métrica, rima e oração, tanto fascinava os ouvintes.
Rogaciano foi o repente em forma de gente.
O repente foi seu guia, sua arma, seu poder, sua razão, o bordão respeitado com que ampliava seus horizontes. Há quem diga que se perde o amigo, mas não se perde o repente. Rogaciano, sem perder o repente, conquistava até o inimigo. Quando respondeu a uma jovem que o chamou de senhor, foi com essa delicadeza que lhe era peculiar:

Não me chame de senhor
Que eu não sou tão velho assim
Perto de ti meu amor
Não sou nem senhor de mim

Seus improvisos são encantadores. “Cabelos cor de prata” gravada pelo maior seresteiro do Brasil, Silvio Caldas, foi um deles. Desse encontro, em noite enluarada, à beira mar, ali no Bar Máxime, no Recife, nascia a canção que se revelou numa grande contribuição ao cancioneiro popular. Rogaciano solicitou um pedaço de papel ao garçom Otávio e sentou-se a uma mesa discreta defronte a Silvio Caldas. Silvio, cujo cabelo começava a pratear, solfejava a melodia e, simultaneamente, a pena do poeta deslizava macia, sobre o papel de embrulho, traduzindo as belíssimas frases musicais em palavras calçadas de poesia e rima para se transformarem em sucesso nacional.


Repentista de vários instrumentos. Atuando, certa vez, no Tribunal de Júri como assistente do Ministério Público, em São José do Egito, nos idos de sessenta, causou comoção geral. Dr. José Silva, assistente da defesa, informou que, quando Rogaciano terminou sua preleção, todos os olhares estavam nublados: do copeiro ao juiz. Quando o interroguei sobre seu estado emocional, respondeu-me que “o jeito foi fazer coro e acompanhar todos”, ou seja, chorar também. Resultado: sete a zero pela condenação.
Rogaciano recebeu três dádivas: o cinzel da poesia, a espada desembainhada do repente e a batuta da musicalidade. Detentor dos três atributos que, no mesmo patamar de qualidade, são indispensáveis ao cantador perfeito. Era ele poeta, repentista e violeiro. Raridade da espécie. Diferentemente dos seus conterrâneos Lourival Batista, Otacílio e Dimas, cuja tradição poética estende-se por mais de oito gerações, a natureza quis que Rogaciano fosse o dedo médio da família. Carregou no tempero, controlou a qualidade e lhe deu de beber na fonte de Cacimba Nova para torná-lo único.
Sobressaiu-se em casa e fora dela. Na convivência dos poetas Vicente Preto, Antonio Pereira, Antonio Piancó, José Santos, Zezo Correia, Pedro Amorim, Vital Leite e os irmãos Batista, tomou gosto pelas pelejas de eito e pelas glosas de praça. Ancorou seu navio de versos num porto de calado profundo. Nasceu num lugar propício. Assim, poderia dar asas à imaginação, que ali seria compreendido e estimulado a prosseguir. Por isso, ele sempre fazia questão de dar a conhecer:

Eu sou da terra onde as almas
São todas de cantadores
Sou do Pajeú das flores
Tenho razão de cantar

Aqui a palavra razão é a essência da poesia, lição de humildade que tanto embeleza como metrifica a quadra, porém se confunde com a própria responsabilidade devido à indumentária que recaía sobre os ombros do menestrel de Itapetim.
Sim, ele sabia que fora predestinado para cantar. Eis por que tinha essa obrigação. Era a única forma de amenizar a dor daquele peito sensível a tudo e a todos. Por isso cantava. Cantava para arrancar o sofrimento e elevar seu coração a Deus, como se estivesse prestando contas de um dever que lhe fora imposto. O dever de cantar.
Até seus vocábulos cantavam dentro das estrofes, porque ele sabia onde e quando promovê-los com a ênfase que desejasse. A colherada de reboco que ele arremessava em determinadas palavras, com a argamassa da poesia, ultrapassava as barreiras da semântica, fazendo com que elas vertessem lágrimas, sorrissem, florescessem, brilhassem, mudassem de matiz e de sentido, aureoladas, muitas vezes, pelo sabor enigmático que circunda o sorriso de Monalisa, em La Gioconda, de Leonardo da Vinci.
Neste aspecto, a subjetividade do sorriso e a objetividade do canto, nos últimos tercetos do belíssimo soneto “Sorrindo e Cantando”, do insigne poeta, fundamentam esse ponto de vista:

Se o pranto morre quando nasce o canto
Eu canto e rio pra matar o pranto
E gosto muito de quem canta e ri
Logo, bem vês por estes dotes meus
Que quando canto, estou pensando em Deus
E, quando rio, estou pensando em ti.

Ninguém sabe quantos pensamentos povoam os bastidores de um sorriso nem quantas mágoas escondem as notas musicais de um canto. Sabe-se que o canto conforta a alma de quem canta, talvez pelo alívio do sofrimento que se esvai, e alimenta a de quem o escuta porque refúgio onde se acalentam as dores. E, o cantador, o que é, senão o veículo dessas mensagens de lenitivo ao coração?
Mas essa foi a prática constante do poeta Rogaciano Leite enquanto aqui viveu!
Legou-nos um invejável espólio cultural digno de tradição. Por onde andou, deixou gravado seu rastro nas calçadas inimagináveis do repente e da poesia, além de uma saudade inesquecível até naqueles que não tiveram o privilégio de conhecê-lo.
Motivo de orgulho para Pernambuco que teve um filho gênio e de esperança para o Ceará por abrigar filhos desse gênio.
Lá fora brilhou como uma estrela e foi uma apoteótica atalaia nos ofícios que abraçou. Na cidade das pedras e dos lajeiros, terra mãe onde a viola do tempo será companheira eterna de tão expressivo canto, o simples balbucio do seu nome provoca procelas em Cacimba Nova, arranca gemidos dos troncos das velhas umburanas e faz soluçar o Pajeú pejado de saudade pela imensa falta que faz a todos nós
“O VIOLEIRO DE ITAPETIM”
Itapetim, 1º de julho de 2020
Saulo Passos
FONTE: FACEBOOK DA SRA. LUSA PIANCÓ VILAR