Por Dr. Saulo
Passos.
Doutor em Direito,
Engenharia e Matemática.
Escritor e poeta.
Conterrâneo e amigo
pessoal.
"Conheci-o é bem verdade e o via com freqüência nos meus tempos de
criança. Sob a minha ótica, conseguia, perfeitamente, distingui-lo como uma
pessoa notável. Tive o privilégio de incorporar esses momentos à minha memória
devido à proximidade familiar existente entre mim e ele, pois sendo irmão de
minha avó Elvira, era na casa dos meus avós que se hospedava quando estava em
Itapetim. Ali, naquele casarão de cinco metros de pé direito, ouvia o
seringueiro Pedro Silva, seu cunhado e meu avô, discorrer, horas a fio, numa
palestra lenta, saudosa e fascinante, ora em português, ora em tupi guarani,
sobre a fauna, a flora e os fatos que vivenciou durante duas décadas nos
seringais da Amazônia. Talvez isso o tenha entusiasmado a reabrir as portas das
“Fronteiras do fim do mundo”, texto jornalístico a respeito desse lugar que
tanto o fascinava e terminou por lhe render um dos três Prêmios Esso de
Reportagem.
Além de inteligência incomum, era de elegância singular. Alto, cabeleira
a Castro Alves, vestia-se com estilo, garboso no andar, montava com primor -
quando desfilava em seu cavalo Cadillac, soltava o chapéu até as costas que se
pendurava ao pescoço pelo barbicacho e eu achava aquilo magistral -, brando no
olhar, reverente nos gestos, voz melodiosa, boa dicção, ótimo orador, eloquente
e persuasivo, bom de conversa, brincalhão - arremedava as pessoas para provocar
risos -, encantador de plateias, escritor, jornalista, compositor, cordelista,
repentista ao extremo, violeiro e, por fim, aquilo que a natureza reservou a
bem poucos do gênero: cantador.
Há, realmente, uma coisa mágica nesta palavra. Um não sei quê. O canto
parece ser a própria voz da alma. É no mistério da combinação das notas
musicais que o canto se firma, tal e qual armadores fixados na parede a embalar
o sonho na leveza de uma cantiga de ninar, acompanhada pelo gemido dolente dos
punhos de uma rede, que envolve a poesia com o sagrado manto da melodia. É com
essa doçura que ela chega até nós, no entanto, o engenho esplêndido que
transforma a dor em poesia reside nas profundezas impenetráveis da alma do
cantador. Quem ensinou ao cantador foi, certamente, o professor do uirapuru.
Cantador, que distinta qualificação para se conferir a uma criatura! E cantador
Rogaciano Leite nunca deixou de sê-lo, apenas recostou a viola à parede da
saudade para cantar ao som de outros instrumentos que o transportaram para
lugares distantes, mesmo assim, não olvidou a cabana, a roça, o sertão, enfim,
tudo o que era de seu, continuou cantando e defendendo, como afirmara no poema
“aos críticos”:
Não sou um Manuel Bandeira
Drummond, nem Jorge de Lima
Não espereis obra prima
Deste matuto plebeu
Eles cantam suas praias
Palácios de porcelana
Eu canto a roça, a cabana
Canto o sertão que ele é meu!
E cantou, e sonhou, e realizou-se. Partiu da Vila de Umburanas, viola
debaixo do braço, já considerado poeta de talento e repentista assombroso, pois
diplomado estava naquela que o poeta Zé Humberto cognominou - e os outros
poetas corroboraram - de faculdade de diplomar cantadores: Itapetim, sua terra
natal. Terra que amou e foi por ela amado. Não pela votação consagradora que
recebeu do seu povo quando candidato a deputado estadual, impondo uma derrota
fragorosa aos candidatos do Padre João Leite, mas pela alegria com que era
recebido por seus pares, legítimos irmãos de terra e de canto. O amor que
consagrava a seu lugar estava tão patente em seus escritos e nas muitas vezes
que discorria sobre seu passado, acercado pelos filhos pequeninos, que Roraima
só sossegou quando pisou o chão daquele parnaso de que seu pai lhe falara
tanto.
Itapetim foi pra Rogaciano o Recife de Manuel Bandeira.
Escutá-lo era uma delícia. Rondava o mundo e voltava qual ave de
arribação. Na certa, em busca de sorver suas raízes para recarregar as
baterias, calibrar a alma, escovar as asas e retomar o vôo do sonho. A
propósito, parte deste sonho foi comprovadamente realizado. O autógrafo “Dr.
Rogaciano Leite”, em baixo relevo, aposto por ele na parede do casarão onde
nascera, revela a ousadia daquela criança em conquistar o espaço da notoriedade.
Assim, ingressou no jornalismo e concluiu o curso de Letras Clássicas na
Faculdade de Filosofia do Ceará, em 1949
Ele se conhecia e sabia do seu potencial. O caminho que o menino
Rogaciano planejara para si também estava desenhado pelas imagens que levou
dentro do matolão de sonhos e que carregaria até o fim da vida. Jamais se
distanciou de suas origens. Inexorável patrocinador da causa popular, venceu
paradigmas, derrubou barreiras, escancarou as portas dos salões aristocráticos
e mostrou ao Brasil, com simplicidade e determinação, do que é capaz o violeiro
repentista com uma singela sonora colada ao peito.
A gente sentindo tudo
Quanto o violeiro sente
Parece que está sentindo
Uma cabocla pachola
Afinando uma viola
Pra tocar dentro da gente!...
Navegante em águas rasas e profundas, nauta soberbo em calmarias e
tormentas. Tanto fazia cantar sextilhas, acompanhado pela viola, num humilde
casebre de taipa, no sertão do nordeste, perante uma platéia singela, como
fazer sonetos de improviso - pérola raríssima nos poetas - sob ovações e
delírios de espectadores eruditos, em praça pública, auditórios ou em teatros
de alta categoria. A excelência de sua poesia mantinha-se estável em qualquer
circunstância.
Ao se apresentar em um teatro em São Luiz, para recital em homenagem ao
centenário de Castro Alves, Rogaciano arquitetou, sem preparo prévio, uma
dessas peripécias, que o jornalista Amaro Raposo, não encontrando adjetivos
para qualificá-las, afirmou que aquilo foi um “escândalo intelectual” jamais
visto nesses meios, “parecia que uma voz, que somente ele ouvia, ditava-lhe
aquela chuva de versos”.
Era o improviso, sem controle, que brotava, em borbotões, daquela fonte
inesgotável de repentes, cuja perfeição de métrica, rima e oração, tanto
fascinava os ouvintes.
Rogaciano foi o repente em forma de gente.
O repente foi seu guia, sua arma, seu poder, sua razão, o bordão
respeitado com que ampliava seus horizontes. Há quem diga que se perde o amigo,
mas não se perde o repente. Rogaciano, sem perder o repente, conquistava até o
inimigo. Quando respondeu a uma jovem que o chamou de senhor, foi com essa
delicadeza que lhe era peculiar:
Não me chame de senhor
Que eu não sou tão velho assim
Perto de ti meu amor
Não sou nem senhor de mim
Seus improvisos são encantadores. “Cabelos cor de prata” gravada pelo
maior seresteiro do Brasil, Silvio Caldas, foi um deles. Desse encontro, em
noite enluarada, à beira mar, ali no Bar Máxime, no Recife, nascia a canção que
se revelou numa grande contribuição ao cancioneiro popular. Rogaciano solicitou
um pedaço de papel ao garçom Otávio e sentou-se a uma mesa discreta defronte a
Silvio Caldas. Silvio, cujo cabelo começava a pratear, solfejava a melodia e,
simultaneamente, a pena do poeta deslizava macia, sobre o papel de embrulho, traduzindo
as belíssimas frases musicais em palavras calçadas de poesia e rima para se
transformarem em sucesso nacional.
Repentista de vários instrumentos. Atuando, certa vez, no Tribunal de
Júri como assistente do Ministério Público, em São José do Egito, nos idos de
sessenta, causou comoção geral. Dr. José Silva, assistente da defesa, informou
que, quando Rogaciano terminou sua preleção, todos os olhares estavam nublados:
do copeiro ao juiz. Quando o interroguei sobre seu estado emocional,
respondeu-me que “o jeito foi fazer coro e acompanhar todos”, ou seja, chorar
também. Resultado: sete a zero pela condenação.
Rogaciano recebeu três dádivas: o cinzel da poesia, a espada
desembainhada do repente e a batuta da musicalidade. Detentor dos três
atributos que, no mesmo patamar de qualidade, são indispensáveis ao cantador
perfeito. Era ele poeta, repentista e violeiro. Raridade da espécie.
Diferentemente dos seus conterrâneos Lourival Batista, Otacílio e Dimas, cuja
tradição poética estende-se por mais de oito gerações, a natureza quis que
Rogaciano fosse o dedo médio da família. Carregou no tempero, controlou a
qualidade e lhe deu de beber na fonte de Cacimba Nova para torná-lo único.
Sobressaiu-se em casa e fora dela. Na convivência dos poetas Vicente
Preto, Antonio Pereira, Antonio Piancó, José Santos, Zezo Correia, Pedro
Amorim, Vital Leite e os irmãos Batista, tomou gosto pelas pelejas de eito e
pelas glosas de praça. Ancorou seu navio de versos num porto de calado
profundo. Nasceu num lugar propício. Assim, poderia dar asas à imaginação, que
ali seria compreendido e estimulado a prosseguir. Por isso, ele sempre fazia
questão de dar a conhecer:
Eu sou da terra onde as almas
São todas de cantadores
Sou do Pajeú das flores
Tenho razão de cantar
Aqui a palavra razão é a essência da poesia, lição de humildade que
tanto embeleza como metrifica a quadra, porém se confunde com a própria
responsabilidade devido à indumentária que recaía sobre os ombros do menestrel
de Itapetim.
Sim, ele sabia que fora predestinado para cantar. Eis por que tinha essa
obrigação. Era a única forma de amenizar a dor daquele peito sensível a tudo e
a todos. Por isso cantava. Cantava para arrancar o sofrimento e elevar seu
coração a Deus, como se estivesse prestando contas de um dever que lhe fora
imposto. O dever de cantar.
Até seus vocábulos cantavam dentro das estrofes, porque ele sabia onde e
quando promovê-los com a ênfase que desejasse. A colherada de reboco que ele
arremessava em determinadas palavras, com a argamassa da poesia, ultrapassava
as barreiras da semântica, fazendo com que elas vertessem lágrimas, sorrissem,
florescessem, brilhassem, mudassem de matiz e de sentido, aureoladas, muitas
vezes, pelo sabor enigmático que circunda o sorriso de Monalisa, em La
Gioconda, de Leonardo da Vinci.
Neste aspecto, a subjetividade do sorriso e a objetividade do canto, nos
últimos tercetos do belíssimo soneto “Sorrindo e Cantando”, do insigne poeta,
fundamentam esse ponto de vista:
Se o pranto morre quando nasce o canto
Eu canto e rio pra matar o pranto
E gosto muito de quem canta e ri
Logo, bem vês por estes dotes meus
Que quando canto, estou pensando em Deus
E, quando rio, estou pensando em ti.
Ninguém sabe quantos pensamentos povoam os bastidores de um sorriso nem
quantas mágoas escondem as notas musicais de um canto. Sabe-se que o canto
conforta a alma de quem canta, talvez pelo alívio do sofrimento que se esvai, e
alimenta a de quem o escuta porque refúgio onde se acalentam as dores. E, o
cantador, o que é, senão o veículo dessas mensagens de lenitivo ao coração?
Mas essa foi a prática constante do poeta Rogaciano Leite enquanto aqui
viveu!
Legou-nos um invejável espólio cultural digno de tradição. Por onde
andou, deixou gravado seu rastro nas calçadas inimagináveis do repente e da
poesia, além de uma saudade inesquecível até naqueles que não tiveram o
privilégio de conhecê-lo.
Motivo de orgulho para Pernambuco que teve um filho gênio e de esperança
para o Ceará por abrigar filhos desse gênio.
Lá fora brilhou como uma estrela e foi uma apoteótica atalaia nos
ofícios que abraçou. Na cidade das pedras e dos lajeiros, terra mãe onde a
viola do tempo será companheira eterna de tão expressivo canto, o simples
balbucio do seu nome provoca procelas em Cacimba Nova, arranca gemidos dos
troncos das velhas umburanas e faz soluçar o Pajeú pejado de saudade pela
imensa falta que faz a todos nós
“O VIOLEIRO DE
ITAPETIM”
Itapetim, 1º de
julho de 2020
Saulo Passos
FONTE: FACEBOOK DA SRA. LUSA PIANCÓ VILAR

